LIBERDADE EM RISCO

Liberdade em risco

 

  • O Estado de S. Paulo
  • 30 Dec 2019
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Opresidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, adiou para 2020 a apreciação de um recurso cuja rejeição pode minar o artigo 19 do Marco Civil da Internet, dispositivo que protege a liberdade de expressão na internet no País ao determinar que conteúdos só podem ser removidos da rede por ordem judicial.

Felizmente, portanto, haverá um prazo maior para que se esclareça a importância da manutenção desse dispositivo do Marco Civil, como fez recentemente o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que reúne integrantes do governo e representantes de diversos setores da sociedade e estabelece as diretrizes relacionadas ao uso da internet no País. O CGI.br divulgou há dias uma nota pública em que, tendo em vista o julgamento no Supremo, defende “o reconhecimento da importância do disposto no artigo 19 do Marco Civil da Internet para a preservação da liberdade de expressão, para a vedação à censura e para a garantia do respeito aos direitos humanos”.

O caso em questão diz respeito a um processo movido contra o Facebook por uma moradora de Piracicaba (SP) que demandava a retirada de um perfil falso criado naquele site com seu nome. Além disso, a autora exigia indenização por danos morais.

Na primeira instância, a Justiça determinou a exclusão da página, mas entendeu não haver motivo para indenização por danos morais, uma vez que o Facebook teria respeitado o artigo 19 do Marco Civil ao esperar a ordem judicial para retirar a página em questão. Na segunda instância, porém, a Justiça determinou também o pagamento de indenização, alegando que o Facebook demorou a retirar a página do ar depois de notificado extrajudicialmente pela reclamante – ou seja, na prática, entendeu que o artigo 19 do Marco Civil é inconstitucional, ao supostamente ferir, por exemplo, o artigo 5.º, inciso X, da Constituição, que protege a intimidade, a honra e a imagem dos cidadãos. O recurso que o Supremo vai avaliar foi movido pelo Facebook, que contesta aquela decisão.

O Marco Civil da Internet não foi uma imposição. Ao contrário, foi resultado de longo período de debates públicos no âmbito da sociedade civil e do Congresso, que afinal optou por uma legislação que protege a liberdade de expressão e rechaça a censura – sem prejuízo dos direitos daqueles que se sentem lesados ou ofendidos por alguma publicação na internet.

Antes da aprovação do Marco Civil, em 2014, os provedores de internet geralmente eram punidos se deixassem de retirar conteúdos após notificação extrajudicial. Ora, tal interpretação favorecia aqueles que pretendiam censurar qualquer conteúdo da internet que considerassem prejudicial, o que era claramente arbitrário. Foi isso o que o Marco Civil corrigiu, ao entregar ao Judiciário a prerrogativa de decidir se o conteúdo deve ou não ser retirado se houver reclamação – e só a partir dessa decisão o administrador do site deve tomar as devidas providências.

O Marco Civil, contudo, não impede que os provedores de internet removam conteúdos que eventualmente contrariem os termos do contrato de serviço, como pornografia infantil ou incitação ao crime. Isso não configura censura, e sim cumprimento de contrato, cujas regras são estabelecidas por e entre particulares, conforme ratificou a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019).

Se há algo a ser aprimorado, por certo não é o Marco Civil, comprovadamente uma das regulações de internet mais avançadas do mundo. É preciso, sim, pressionar as grandes empresas provedoras de aplicações de internet, em especial as que dominam as redes sociais, para que modifiquem os mecanismos que têm permitido a disseminação de notícias falsas e que favorecem o discurso de ódio apenas porque geram maior tráfego e, portanto, maior faturamento publicitário. Impérios globais de comunicação estão sendo erguidos à custa da saúde da democracia em muitos países, e é evidente que isso não pode continuar assim.

Dito isso, é preciso reafirmar que a liberdade de expressão na internet não é uma concessão de governos ou de empresas privadas, e sim um direito constitucional, que não pode ser sacrificado em nome da luta contra as fake news.

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